sábado, 28 de maio de 2016

'Me sinto um lixo', diz adolescente que sofreu estupro coletivo

Mãe já pensa em mudar de estado para proteger a família

Adolescente vítima do estupro coletivo: 'Me sinto um lixo. O estigma é o que está me doendo mais' Foto: Márcia Foletto / O Globo 

RIO - Às vezes, parece que a ficha não caiu, como a própria adolescente costuma dizer. Ela reclama da falta do celular desaparecido, liga para a avó pedindo um novo. Balança as pernas com rapidez quando é contrariada. Faz um muxoxo. Nesses momentos, parece apenas mais uma jovem que teve um aparelho furtado. Só parece. A irritação é apenas um sintoma brando de uma dor aguda. Tão forte, que ela ainda não consegue assimilar. O celular que ela tanto quer de volta sumiu no mesmo dia em que o sorriso, tão comum nas selfies que costumava postar. Foram 33, ela calculou, enquanto estava deitada numa cama nua e dopada, os homens que se revezaram para violentá-la até que ela sangrasse. A violência continua — agora, a menina, embora venha recebendo muito apoio, também enfrenta comentários maldosos nas redes sociais: 
— Me sinto um lixo. Parece que quando as pessoas me olham veem um lixo na frente, mesmo com todo o apoio que estou recebendo. O estigma é o que está me doendo mais. É como se dissessem 'a culpa é dela. Foi ela que estava usando roupa curta. Foi ela que quis ir para lá’. Eu vi isso no Facebook. Eu queria que as pessoas soubessem que não é culpa da mulher. Não tem como alguém culpar uma vítima de roubo, por exemplo — afirmou a jovem, séria. — Nesse momento em que eu estou falando, deve ter uma mulher sendo estuprada ou morta em algum lugar

Os dias seguintes têm sido difíceis para a adolescente de 16 anos. Anteontem, ela tomou cinco banhos. No chuveiro, em contato com o próprio corpo, costuma lembrar do castigo que lhe foi imposto. E chora. Até tem chorado pouco, ela conta. Deixou as lágrimas rolarem quando abraçou a advogada que tem acompanhado seu caso. E ainda uma outra vez, quando leu um poema que uma mulher desconhecida, solidária, enviou no Facebook.
 
Das horas de terror, ela lembra do falatório de homens: “eu sei que você gosta, você é safada, você é piranha”. Enquanto dois a seguravam, para que não fugisse, embora dopada com algum tipo de “Boa Noite, Cinderela”, outros dois a violentavam, até mesmo com armas.

— Me sentia totalmente indefesa. Eu pensava em sair dali. Achava que ia morrer. Achei que eles iam me enforcar. Até arma eles usaram. Quero a justiça de Deus para essas pessoas — disse.

 MEDO DE SER RESPONSABILIZADA

Sobreviver, entretanto, foi apenas o primeiro dos degraus. Depois do estupro, veio o medo de ser responsabilizada pelo que aconteceu. O alento para a jovem, entretanto, tem vindo de todas as partes do mundo e do país, mediado pelas redes sociais. Viu que muitas mulheres que ela nunca conheceu mostraram seu apoio. E elas reforçaram: a culpa nunca é da vítima, e sim do agressor. 

— Eu queria agradecer a essas pessoas, porque eu não esperava. Eu pensei que eu seria realmente julgada. Pensei que eu seria apedrejada. A maioria delas (das mulheres) diz: ‘tô contigo’ — diz, abrindo, finalmente, um sorriso. 

Ela agradeceu o apoio nas redes sociais: “ Todas podemos um dia passar por isso. Não, não dói o útero e sim a alma por existirem pessoas cruéis impunes !! Obrigada pelo apoio", postou.

Em muitos momentos, seus pais parecem mais cientes da gravidade do que ocorreu do que a própria jovem. O pai, de 70 anos, chora com facilidade. Com a ajuda de muletas, tem dificuldade para se locomover, depois de sofrer dois AVCs. A menina temeu pela saúde dele quando o vídeo em que estupradores zombam da vítima chegou ao conhecimento da família. A primeira a receber foi a avó da menina.
— O que fizeram com a minha filha foi horrível. Ninguém espera criar uma menina para um dia acontecer isso — emocionou-se. 

No dia seguinte ao estupro, ela chegou em casa, em um condomínio de um bairro de classe média da Zona Oeste do Rio, vestindo roupas de homem, de um amigo que a ajudou, ainda dopada, a sair da favela onde o crime ocorrera. Já em casa, entrou no chuveiro e limpou o sangue que ainda corria. E depois foi dormir. Decidiu não contar o que tinha sofrido para ninguém. Se não fosse pelo vídeo divulgado, o segredo estaria guardado até hoje: 

— Quando apareceu na internet (as imagens), eu estava em casa. Aí, a advogada me chamou para ir na delegacia e no IML. Ela disse que estava de carro aqui embaixo. Tomei banho, botei a roupa e desci. Se não fosse por ela até hoje acho que não faria nada.

‘PODERIA TER SIDO PIOR’, DIZ MÃE DA VÍTIMA

Já a mãe, uma pedagoga de 46 anos, diz que está “mais ou menos”. Com muito medo, ela teme andar na rua, com ou sem a filha. Ela é avó e uma espécie de mãe pro menino de três anos que a filha deu à luz aos 13 anos. O pai dele, morador de uma comunidade da Zona Norte e quatro anos mais velho que a garota, nunca quis registrar o menino. Era ligado ao tráfico e morreu baleado no ano passado durante um confronto. Agora, além de dar colo ao neto, a pedagoga dá também à filha, junto de uma frase de consolo:
— Poderia ter sido pior.

As poucas saídas da jovem têm sido para ir ao hospital ou à delegacia. Ontem à tarde, foi dia de novo depoimento na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), que investiga o caso. A menina foi ao quarto trocar de roupa, voltou para a sala vestida com blusa e saião. No almoço apressado, antes que o carro de polícia chegasse, chegou à sala de estar, com passinhos miúdos, seu filho de 3 anos, ainda sonolento. A adolescente colocou o pequeno no colo, perguntou se ele queria umas garfadas de arroz com feijão. Ele não respondeu, e dormiu nos seus braços. 

Mais quieto que o usual, segundo os pais da moça, o menino demonstra sentir, na sua intuição infantil, que algo afetou a casa.


FAMÍLIA PENSA EM DEIXAR O RIO

Desde o crime, a já difícil rotina da casa mudou. Jornalistas não param de ligar — enquanto a reportagem do GLOBO esteve no local, foram três telefonemas. Anteontem, um grupo de amigas foi visitar a garota. Para ver a menina pessoalmente, por enquanto, só visitando. A casa, num condomínio com academia e área de lazer que deveria ser um “lar” para a família desde que se mudaram, há três anos, tornou-se nos últimos dias uma espécie de esconderijo.

A jovem, que já não ia à escola pública em que estuda desde o início do ano, agora nem pensa em sair de casa, por medo. Também não sabe ao certo como quer que seja seu futuro. Quer casar, ter mais filhos. Se depender dos pais, no entanto, o recomeço será longe. Eles querem sair da cidade e evitar que a jovem lembre a todo momento do que enfrentou. Ainda não escolheram o destino. Por enquanto, na matemática da dor, a certeza é que trinta e três homens, incitados pelo machismo, foram capazes de, ao violentar o corpo de uma adolescente, dilacerar a vida dela e de mais três pessoas.


O Globo 

o.

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